Crónica de Jorge C Ferreira | A Mais Linda do Bairro

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
A Mais Linda do Bairro

 

Um suave deslizar. Quase levitação. Uns cabelos longos e uma longa atracção. Diferente, será a palavra que, talvez, a defina de uma forma mais simples e directa. Uma estória intensa que nos foi contada numa noite em que as estrelas estavam muito perto de nós, e nós ao ar livre tentando apanhar algum fresco da noite. Uma temperatura amena convidava-nos a permanecer naquele pátio e continuar a contar o que nos tinha iluminado durante outros tempos, outras vidas, vidas que se mantêm presentes na nossa mente.

A estória era de uma beleza tal que até parecia estranha. Algo que custava a acreditar. Mas era muita a gente que falava dela. Nunca se sabe se uma estória nasce de uma invenção e se espalha nas asas de pássaros que voam a dar a notícia. Depois, não esquecer aquele célebre ditado: “quem conta um conto acrescenta um ponto.”

Cada pessoa quer ver a sua opinião expressa, mesmo numa estória que não seja sua. Depois há a interpretação que cada um faz do que ouviu ou leu. Mas havia os que juravam tê-la visto nos seus tempos áureos.

Havia sempre uma rapariga especial no bairro. A tal com que todos queriam namorar, que todos queriam beijar, chamar de sua e, que ela lhes dissesse amo-te enquanto os seus lábios se mordiam. Por norma, essas raparigas sabiam e, por vezes, faziam gala da sua beleza. Mas a rapariga aqui em causa estava perto da perfeição. Arranjava-se de uma forma elegante e assaz provocante. Era assim que passeava pelas ruas e travessas do bairro e se sentava no café, traçava a perna de forma ousada, fumava um cigarro e bebia uma bica.

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O café começava a encher-se  com os seus admiradores. Ela até no fumar era elegante. O seu modo de segurar o cigarro e a forma arrojada como o levava à boca. O fumo a ser expelido suavemente, uma nuvem que nos abraçava. A saia curta mostrava umas pernas perfeitas e desejadas por olhos que não se despegavam dela. Nada nela mostrava qualquer incómodo de tão segura que estava de si.

Entrou no café um rapaz com bom aspecto. Dirigiu-se à mesa que era foco de todos os olhares. Beijou a bela rapariga e sentou-se. Tratava-se de alguém que não era conhecido por aquelas bandas. Tinha um certo ar de artista, umas mãos que movimentava de forma elegante enquanto falava. Quem será este gajo?, perguntavam todos os admiradores da jovem. Alguns, vermelhos de raiva, procuravam maneira de expulsar o rapaz. Não deu tempo para tal. Ele, depois de pedir uma bica, bebeu-a, conversaram mais um pouco, fez questão de pagar e saíram. Assim que saíram do café ela deu-lhe o braço.

Um baque invadiu os corações dos apaixonados que agora se consideravam miseráveis, perdidos. E as conversas começaram:

– Pode ser familiar – dizia um;

– Não acredito -, dizia outro;

– Devíamos segui-los -, alvitrava mais um;

E assim foram prolongando a conversa. Até que o desconforto os fez desistir. Tinha sido um grande golpe. Havia que recuperar e pensar melhor com a cabeça fresca.

No entanto, o pior estava por acontecer, a rapariga, passado pouco tempo, deixou de ser vista. A sua casa ficou com escritos para alugar. Saber do seu súbito desaparecimento passou a ser o desidrato principal naquele café. Uns ficaram macambúzios, outros choravam sozinhos em casa para não dar parte de fraco. Hoje dir-se-ia, e bem, que estavam num estado depressivo e teriam de ir ao psicólogo.

Ainda hoje há quem continue a procurá-la.

«Então agora fazes desaparecer belezas!»

Fala da Isaurinda.

«É uma estória, até muito plausível.»

Respondi.

«Só tu, tens cá uma lata.»

De novo Isaurinda, e vai, um sorriso trocista no rosto.

 

Jorge C Ferreira Setembro/2024(447)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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8 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A Mais Linda do Bairro”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    Tão bela deve ser, “A mais linda do bairro.”
    Linda e elegante, acho que a elegância é um complemento da beleza. Faz a diferença.Imagino como é linda, para merecer a sua atenção e escrever esta esta história maravilhosa, que acabei de ler. Pouca sorte para tantos, que no silêncio choraram ao perdê-la de vista.
    Ninguém mais a viu. Sumiu. Mais não digo, não quero acrescentar mais um ponto.
    Gostava de saber, se está feliz! Faz-nos pensar, a sua Crónica linda, querido escritor mestre das palavras.
    Adorei, abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Maria Luiza, querida Amiga. Há um ditdo que diz: “quem feio Ama bonito lhe parece.” Dizem que a Mais Linda do Bairro, deixava um rasto de olhares para trás. Gente especada. Muito grato pelo seu comentário. Abraço grande.

  2. Eulália Coutinho Pereira

    Belíssima crónica. Tal qual arapariga mais bonita do bairro. Bela, elegante, sensual e misteriosa. Punha loucos os homens que por ela passavam.
    Um dia foi embora, talvez seguindo um grande amor. O bairro ficou diferente. As memórias permanecem..
    Tanto para refletir. A sensibilidade do Poeta sempre presente.
    Obrigada Amigo. Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Eulália, minha Amiga. No seu conciso comentário, conseguiu expressar tudo o que expresso no meu texto. Todos guardamos algo perdido na memória. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  3. Mena Geraldes

    Sabes o que eu penso, Jorge, contador de histórias e outras efabulações?
    Essa é uma como tantas outras, narrada com mestria, com todos os ingredientes para nos enredares nessa teia que tanto tem de fantástico e poético como de real.
    Afinal, não são todas as mulheres lindas?
    Lindas pela vida que escolheram, a
    dedicação com que se entregaram aos seus mais variados, exemplares
    papéis.
    Esmeradas profissionais, donas de suas casas ou de outras, filhas,
    mães, amantes, senhoras de si ou de tantos quantos cuidaram e velaram?
    Lindas, apesar do corpo modificado
    pelas maternidades que as engrandeceram, pelo tempo que as marcou, as incumbências que as ocuparam, as duras lutas travadas,
    as perdas que as devastaram, as conquistas bem sucedidas,os ideais
    porque se degladiaram ou os medos
    que as inquietaram?
    Lindas demais, acrescentaria eu.
    Mesmo exaustas, feridas,ultrajadas, incompreendidas, ofendidas ou humilhadas. Para todo o sempre as mais lindas das suas ruas…!
    Grata pela tua prosa, meu exímio
    cronista por me teres dado a possibilidade de delinear este testemunho dedicado a Todas as
    Mulheres. Lindas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena, linda mulher, minha Amiga. Mais uma vez nos presenteias com um poema lindíssimo. Uma homenagem às mulheres. A minha eterna gratidão por tudo. Abraço enorme.

  4. Branca Maria Ruas

    Imediatamente após a leitura atenta desta tua crónica – “A mais linda do bairro” – o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi de efemeridade. Segundos depois, “paixão platónica” e, logo a seguir, “o fruto proibido é o mais apetecido”.
    E tudo isto se liga na medida em que o desconhecido nos conduz, na maioria das vezes, a leituras erradas ou precipitadas. Tudo depende do nosso desejo, estado de espírito ou imaginação. E imaginação não te falta, principalmente quando se trata de memórias dos tempos em que as vidas não tinham fim e qualquer sinal podia conduzir a uma história de amor. Real ou sonhado. E volto a recordar Edgar Morin quando defende que temos de viver poeticamente. E tu sabes fazê-lo e consegues indicar-nos bem esse caminho!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Maria, minha grande Amiga. Que excelente comentário. Que generosa és na leitura que fazes dos meus textos. É tão reconfortante. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

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